Marco Losavio, Universität Wien, marco.losavio@univie.ac.at
“Não esqueça eu” - O uso do pronome sujeito EU em função de objeto no português popular do Brasil
“Não esqueça eu” - The use of the nominative pronoun EU in object po- sition in spoken Brazilian Portuguese
Abstract
Portuguese, like many other Romance languages, is traditionally classified as a pro-drop language with a nominative-accusative alignment in its pronominal system. This means that it basically encodes the subject function on the verb, whereas the object function is marked on the object pronoun itself. However, spoken Portuguese in Brazil has been known to have drastically readjusted its pronominal system due to the introduction of novel pronouns such as você and a gente that do not inflect for case and which both trigger the verb to be inflected for 3rd person singular. Obviously, such radical changes can affect the entire pronominal system. New evidence taken from various sources such as pop music and X (Twitter) show precisely this: loss of case distinction seems to affect also other pro- nouns in Spoken Brazilian Portuguese. This paper tries to follow this development with the example of the 1st person singular pronoun eu by analyzing data found on social media and comparing it to written sources as far back as the 15th century.
Keywords
Linguistic typology, pronominal system, Brazilian Portuguese, clitics, morphosyntax.
Resumo
O português, como muitas outras línguas românicas, é tradicionalmente classificado como uma língua pro-drop com alinhamento nominativo-acusativo em seu sistema pronominal. Isso significa que a função tanto do sujeito como do objeto é marcada no próprio pronome, mas que o sujeito pronominal tende a não ser expresso lexicalmente já que basicamente sua função é codificada no verbo. No entanto, o português falado no Brasil é conhecido por ter reajustado drasticamente seu sistema pronominal devido à introdução de novos
Energeia IX (2024), 238-270 ISSN 1869-4233
pronomes, como você e a gente, que não se flexionam quanto ao caso e ambos requerem
o verbo na 3.ª pessoa do singular. Obviamente, mudanças tão radicais podem afetar todo
o sistema pronominal. Novas evidências provenientes de várias fontes, como por exemplo a música popular e X (Twitter), mostram exatamente isso: a perda da distinção de casos parece afetar também outros pronomes em português brasileiro popular. Este artigo tenta acompanhar esse desenvolvimento com o exemplo do pronome de 1.ª pessoa do singular eu, analisando dados encontrados nas redes sociais e comparando-os com fontes escritas que remontam até ao século XV.
Palavras chave
Tipologia linguística, sistema pronominal, português brasileiro, clíticos, morfossintaxe.
Introdução
Este ensaio foca no uso do pronome tônico da primera pessoa eu em posição de objeto no português popular do Brasil (PBP). Considerem-se os seguintes exemplos retirados da mú- sica popular no Brasil:
a. Ô leva eu, minha sodade. (Amaro, Nilo 1961)1
Então deita e aceita eu. […] Beija eu! (Monte, Marisa 1991)2
Você não percebeu que eu só tô te desejando eu. (Huff, Murilo 2021)3
Namora eu aí também! (Jorge e Mateus 2021)4
Ama eu como eu amo você. (Amorim, Felipe 2021)5
O português é tradicionalmente classificado como uma língua com alinhamento no- minativo-acusativo em seu sistema pronominal. Isto significa que a função do objeto é marcada no próprio pronome, ou seja, existem formas pronominais que se diferenciam do nominativo, inclusive para o pronome eu. Consequentemente, nos exemplos aqui citados segundo a gramática normativa o eu deveria aparecer como clítico me ou inclusive redo- brado com o pronome tônico oblíquo mim com marcação diferencial de objeto (DOM) (cf. Fábregas 2013; Kabatek et al. 2021), caso o contexto requeira ênfase.
1 https://www.letras.com/nilo-amaro-seus-cantores-de-ebano/664149/.
2 https://www.letras.com/marisa-monte/63/.
3 https://www.letras.com/murilo-huff/desejando-eu-part-henrique-e-juliano/.
4 https://www.letras.mus.br/jorge-mateus/namora-eu-ai/.
5 https://www.letras.mus.br/felipe-amorim/ama-eu-part-nattan/.
O sistema pronominal e sua sintaxe são recorrentemente referidos como exemplo para indicar diferenças estruturais entre a variedade brasileira (PB) e a europeia do portu- guês (PE). Um dos aspetos mais salientes a propósito disso é a diferença da ordem dos clíticos tocante a sua posição relativo ao verbo, sendo que o PE generalizou a ênclise en- quanto que a variedade brasileira favorece a próclise e,6 destarte, segue a tendência das outras línguas românicas (Pagotto 1992; Nunes 1993; Martins 2016 entre outros). Con- tudo, não é o único aspeto do sistema pronominal que se diferencia entre as duas varieda- des. O PE, por um lado, conservou em grande parte intato o sistema dicotômico com pro- nomes tônicos e átonos, herança dos pronomes flexionados do latim, cujo uso se mantém vivo até hoje na língua falada. No Brasil, por outro lado, a introdução dos pronomes você/vocês para a 2.ª pessoa e da forma a gente para a 1.a plural levaram a uma mudança estrutural do paradigma pronominal, já que essas formas inovadoras não se flexionam quanto ao caso. Essa redução da flexão de caso dos pronomes pessoais estende-se no PB à 3.ª pessoa. Assim se observa uma forte tendência ao uso das formas de sujeito dos pro- nomes ele(s)/ela(s) nas funções de objeto direto e indireto como o uso do objeto nulo em determinados contextos (Kato 1993; Schwenter e Silva 2002; Cyrino 2016 entre outros). Isso restringe o uso dos clíticos o(s)/a(s) basicamente à norma culta, especialmente na escrita (Kato e Duarte 2005 entre outros). Outros fenômenos relacionados que cabem aqui ser mencionados são: (1) a forte tendência a exprimir o sujeito pronominal categorica- mente (Tarallo 2016; Duarte 2016); (2) as contrações de um clítico dativo e acusativo em PBP não se usam e portanto há uma preferência de expressar só um dos actantes com clítico e o segundo com um pronome tônico (Lima Salles e Torres Morais 2023); (3) De- pendendo da classe semântica do verbo, o PBP tem reduzido os verbos reflexivos, quer dizer, o pronome reflexivo está sendo abandonado como objeto direto (Nunes 1995). (4) Ao passo que se está perdendo seu traço de reflexividade e, portanto, seu papel de pronome oblíquo, está ganhando ao mesmo tempo terreno no uso como sujeito de construções infi- nitivas impessoais (Noll 1999: 62; Castilho 2010: 481; Nunes 1991). Estes desenvolvi- mentos comportam profundas alterações que acabam afetando todo o sistema pronominal do PB, fato que é comprovado pelo uso do pronome da 1.a pessoa do singular eu em posição de objeto.
6 Obviamente, esta é uma afirmação simplificadora de fatos mais complexos porque inclusive em PE os clíticos podem aparecer antes do verbo principal em certos contextos. Para uma anâlise mais detalhada veja Martins (2016).
Apesar dos testemunhos que oferece a música popular no Brasil citados nos exem- plos em (1), este uso da forma reta de eu não tem recebido a mesma atenção como os pronomes das outras pessoas nem nas pesquisas mais recentes nem tampouco nas gramá- ticas. Com isto, não parece desencaminhado tentar lançar uma luz sobre o assunto. O pre- sente ensaio, portanto, pretende investigar precisamente o uso do pronome tônico da 1.a pessoa do singular do caso reto/nominativo eu em posição de objeto direto e indireto com base em dados do X (antigo Twitter). Os dados demostram que o uso de eu ocorre em variação livre tanto com a forma tônica do caso oblíquo quanto com a forma átona.
O trabalho se iniciará com uma revisão da bibliografia existente sobre o tema. Serão abordados tanto os exemplos citados em gramáticas quanto as discussões prévias acerca da temática. A isto se seguirá a apresentação dos dados encontrados no X que serão des- critos em termos de sua deviação da gramática normativa. No entanto, neste trabalho não se apresentarão análises quantitativas, pois o foco principal é oferecer apenas uma amostra das possibilidades sintáticas do fenômeno e uma discussão sobre este a partir das observa- ções feitas inclusive na música popular brasileira que aparentemente se refletem na lingua- gem utilizada nas redes sociais e as possíveis consequências no que diz respeito à tipologia do PBP. Portanto, trata-se de um trabalho qualitativo. Os dados foram recolhidos com a ajuda da função Advanced Search do X que permite a busca de orações exatas. No pará- grafo de encerramento, para além de uma reflexão sobre a contribuição deste ensaio ao estudo da mudança linguística no PB, serão retomados os pontos mais importantes.
À procura de eu na literatura
Antes de apresentarmos os dados encontrados no X, cabe aqui rever e discutir o que já foi escrito sobre o uso do pronome tônico eu como complemento. A este fim, indagamos pri- meiramente nas gramáticas.
Diastraticamente marcado
Uma consulta comparativa das principais gramáticas da língua portuguesa revela que o fenômeno é tratado com uma surpreendente falta de consideração. Cintra e Cunha (2017) e Moura Neves (2000) não fazem nenhuma menção deste uso. Quando é mencionado, portanto, parece haver um consenso geral de que o uso de eu em posições de objeto registro é característico de falantes com baixa escolaridade, ou seja, é marcado diastraticamente.
Na gramática de Castilho (2010: 477), por exemplo, a forma aparece numa tabela dos pronomes pessoais como variante na coluna dos complementos, porém sem especifi- cação nenhuma. Já Bagno (2014: 743) lista eu como variante entre os oblíquos, mas acres- centa a sucinta observação que “a forma ‘eu’ ocorre como complemento oblíquo, sobretudo em variedades rurais e rurbanas […]”. Infelizmente, ele não inclui nenhum exemplo. A Grammatik der portugiesischen Sprache de Gärtner (1998) e a Gramática do português brasileiro de Perini (2013: 120) são as únicas, entre as consultadas para esta contribuição, que apresentam inclusive exemplos. Perini, por um lado, faz menção de casos em que os nominativos são usados, na variedade do sudeste, como objeto quando “são fortemente enfatizados” ou quando são modificados por outro elemento. Vejamos os exemplos (ibid.):
O Ronaldo não odeia você, ele odeia eu.
a. Ele queria eu mesmo no projeto.
b. O diretor mandou chamar só eu.
Segundo a gramática normativa o exemplo (2) se exprimiria com clítico mais o oblí- quo tônico com DOM ele me odeia a mim. Gärtner (1998: 246), por outro lado, cita os seguintes exemplos:
a. Aí trouxeram eu carregada.
b. Mamãe, vende eu para a D. Julita, porque lá tem comida gostosa.
O primeiro é uma citação retirada dum estudo sobre o dialeto caipira e o segundo do livro autobiográfico Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960) da autora Caro- lina Maria de Jesús. Portanto, aponta a que este fenômeno se daria basicamente em indi- víduos não escolarizados, como afirma o próprio Gärtner: “em representantes das camadas sociais mais baixas (analfabetos)” (ibid.).7
Com isto voltemos para o início deste artigo. A respeito do exemplo (1b), o autor da letra, Arnaldo Antunes, deu uma explicação própria do uso desta forma, afirmando numa entrevista na Folha de São Paulo o seguinte:
Já me inspirei muito neles [os filhos], até para coisas que não são para o público infantil. [A canção] 'Beija Eu', por exemplo, tem esse jeito de dizer que era o deles quando eram pequenos. 'Pega eu', 'leva eu', claro que transmitido para uma relação adulta amorosa, só que pegando um pouco a afeti- vidade que vinha da sintaxe que eles usavam comumente.8
7 Traduzido do original alemão: “bei Angehörigen unterster sozialer Schichten (Analphabeten)”.
8 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/151171-monica-bergamo.shtml.
Segundo ele, o eu em posição de objeto seria então uma marca duma linguagem afetuosa que imita a fala das crianças para assim criar uma sensação de proximidade. Isto parece ser confirmado pelo seguinte: em primeiro lugar, este uso é, ao que parece, um traço da música popular que trata precisamente de temáticas amorosas como demostram os exemplos (1a-e) acima citados. Além do mais, pode aparecer inclusive em cantos de amor populares. Os seguintes exemplos são citados em uma coleção de cantos populares brasi- leiros (Romero 1883) do século XIX:
Maria, tu não desprezes eu por ser pobre e não ter. (Romero 1883b: 103)9
Yáiá não me dá, não quer bem a eu. (Romero 1883b: 63)10
Na frase (6), o pronome eu não é usado apenas como OD, mas também aparece com DOM, em vez do pronome oblícuo (me quer bem a mim). Isso sugere que alguma marcação do pronome como objeto era preciso para distingui-lo do simples nominativo.
Porém, o que mais destaca estes exemplos é a sua antiguidade. O fato que em um canto popular do século XIX apareça eu como OD pode ser interpretado como uma indi- cação de que o fenômeno já vinha se estabelecendo como um elemento diastraticamente marcado. Pois, para que um texto artístico utilize uma marca linguística para distinguir o locutor —neste caso um pobre que não tem, isto é, não possui nada— um dado fenômeno tem que ser inequivocamente identificável como tal. Isto posto, não é unicamente o uso não padrão do pronome eu, mas também o vocabulário usado que indica que o locutor do canto representa um descendente africano, dado que yáiá é um forma de tratamento sinô- nima a sinhá/senhora “na bôca dos negros africanos” (Nascentes 1966: 392). Voltando à questão da marca social deste fenômeno, podemos observar que parece haver uma corre- lação entre a linguagem de amor ou de carinho e o uso de construções gramaticais incor- retas e que o uso das mesmas como recurso estilístico na literatura remonta pelo menos ao século XIX.
Com efeito, no tocante aos exemplos (5) e (6) —entre outros— a autora de um estudo abrangente sobre o infinitivo pessoal do português constata que
9 A frase faz parte de um canto em estrofes de 4 versos. A estrofe integral diz: Maria, tu não desprezes / Eu por ser pobre e não ter; / Póde o rico desprezar-te / E o pobre não te querer.
10 A frase faz parte de um canto em estrofes de 4 versos. A estrofe integral diz: Yáiá dá-me um doce, / Quem pede sou eu; / Yáiá não me dá, / não quer bem a eu. No entanto, deve-se interpretar estes exemplos com muita cautela, já que as formas retas podem, nestes casos, ter sido escolhidos por motivos estilísticos por parte do poeta. Portanto, no primeiro exemplo o eu abre o segundo verso da estrofe e por conseguinte assume uma posição enfática no verso. Ademais, seguem-lhe dois infinitivos dos quais o eu é sujeito. Já no segundo exemplo o segundo verso termina em sou eu e a escolha de usar novamente a forma reta se deve talvez à rima resultante.
Continuando, gostaríamos de acrescentar aos últimos dois exemplos mais um reti- rado de um poema de amor popular que parece sublinhar esta correlação. É citado por Dubert e Galves (2016) em The Oxford Guide to the Romance Languages:
Se for embora da minha vida, me leva eu junto com você, […] não vai embora sem eu. (No- gueira apud Dubert e Galves 2016: 434)12
Há dois aspetos que chamam a atenção nestes versos. O primeiro é que o caso reto, além de atuar como OD para um verbo transitivo, pode servir de complemento de uma preposição (sem eu). O outro detalhe a ser ressaltado é que o eu não aparece simplesmente como OD do verbo leva, mas que parece ser um caso de clitic doubling (Dubert e Galves 2016: 435). A saber, o OD já é expresso pelo clítico me, porém é retomado com a forma tônica. No PE esta frase se exprimiria da seguinte forma:
Leva-me a mim junto contigo.
Vemos que em PE, se a retomada do clítico é feita através de outro pronome se aplica a DOM (Wiskandt 2021: 222), ao contrário do PBP que dá preferência ao nominativo sem marcação diferencial, fato que contrasta com o exemplo (6) em que a DOM ainda é apli- cado justamente para ter alguma forma de marcação da função sintática. Este exemplo, pois, lembra os casos de realce que menciona Pierini (2013: 120). Atuaria então na frase
(7) também um tipo de atração sintática por causa do você indeclinável que lhe segue? Apesar de que Dubert e Galves citem este exemplo em conexão com o clitic doubling, eles constatam que essa propriedade está conectada precisamente à possibilidade em PBP de usar pronomes tônicos como OD e concluem “[t]aken together, the existence of the redu- plication without a preposition and the invariability of the pronouns suggest that they are not marked for case […]” (Dubert e Galves 2016: 435).
Entretanto, voltemos ao argumento da linguagem das crianças mencionada por Vas- concellos e Antunes. Nunes (1993), em um estudo sobre a queda dos clíticos acusativos
11 Traduzido do original alemão: “So erinnert das bunte Durcheinanderrütteln und -schütteln der konjunctiven und absoluten Pronomina einerseits, und andererseits das der Acc. und Nom., an das bekannte Negerport. und an die port. Kindersprache, die so gern mit […] einer einzigen Pronominalform, dem Nominative, operieren”.
12 O poema integral está disponível em: https://recantodasletras.com.br/poesias/2534441.
de 3.a pessoa no PB, levanta a hipótese que o motor da suposta inovação do PB de licenciar a forma reta ele/ela em posição de objeto, tenham sido precisamente as crianças no início do século XIX (Nunes 1993: 169). Contudo, este uso de ele/ela —em alguma medida— sempre tem existido ao longo da história da língua portuguesa.13 De fato, como afirma Coseriu “los actos lingüísticos son […] actos de re-creación; no son invenciones ex novo y totalmente arbitrarias del individuo hablante, sino que se estructuran sobre modelos pre- cedentes” (1977: 56). Dito de outra forma, o uso do pronome eu em posição de objeto se baseria em um modelo pré-existente. Um tal modelo, portanto, não precisa ser intralin- guístico, já que pode ser uma consequência do contato com outras línguas.
Contato linguístico
Em uma pesquisa, que se baseia em um trabalho de campo conduzido em comunidades baianas de origem quilombola (Baxter e Lucchesi 2009: 75 e seg.), os autores argumentam que os traços linguísticos mais salientes que diferenciam a variedade do português falado nestas comunidades da norma culta no Brasil remontam “aos primeiros séculos da coloni- zação do Brasil e decorre do processo de transmissão linguística irregular desencadeado pelo contato do português com as línguas indígenas e africanas” (ibid.: 472, grifo nosso). Eles inferem que no Brasil se tinha desenvolvido um tipo de crioulo que, à medida que o influxo de falantes do PE aumentava, passou por um processo de decrioulização. Para eles, pois, a erosão das formas pronominais no PBP atual seria um vestígio dessa variedade que eles chamam português afro-brasileiro. Os pesquisadores recorrem ao sistema pronominal dos crioulos africanos para confirmar a hipótese. E de fato, os crioulos africanos de base portuguesa mostram que em todas as posições sintáticas se utiliza só um pronome para cada pessoa. O fato que no PBP eu pode ser utilizado da mesma maneira seria um claro indício da sua descendência de uma língua parcialmente crioulizada, segundo afirmam os dois pesquisadores e dão o seguinte e único exemplo:
O marido num quis eu não. (Baxter e Lucchesi 2009: 479)
Baxter e Lucchesi explicam que a taxa de aparecimento de eu como objeto na amos- tra é muito baixa “nos dias atuais” (Baxter e Lucchesi 2009: 481), implicando que já foi
13 Os pronomes da 3.a pessoa são descendentes de um demonstrativo. A saber, quando nos textos medievais aparece ele/ela como OD ou OI, eles devem ser considerados dêiticos e não fóricos. O mesmo fenômeno é observável em outras línguas românicas. Vejam, por exemplo, em italiano que preservou essa diferença semântica: io lo vedo vs. io vedo lui. O primeiro caso poderia ser uma resposta a um pergunta como “vedi Marco?” enquanto que a segunda opção corresponderia a uma pergunta como “chi vedi?”.
mais alta. Portanto, há um aspeto que poderia ser visto como um argumento em contra desta teoria. Os autores oferecem quadros de alguns sistemas pronominais de crioulos ainda hoje falados na África. Curiosamente, todos, sem exceção, mostram uma forma do pronome da 1.a pessoa com nasal.14 Inclusive o papiamento de Curação usa uma variante dessa forma. Segundo Bollée e Maurer (2016: 452) são só os crioulos da Asia que mostram um pronome derivado de eu. Supõe-se que essa diferença entre crioulos atlânticos e asiá- ticos se deve ao fato que muitas línguas africanas, entre outras as línguas bantu, têm como pronome da 1.a pessoa precisamente uma forma que começa com nasal. Isso levanta a questão de por que um suposto crioulo com base nas línguas bantu tenha generalizado a forma reta em vez da forma oblíqua que também começa com nasal, sobretudo se, como Baxter e Lucchesi teorizam, tenham se desenvolvido línguas francas africanas no Brasil com base no bantu (2009: 64 e seg), o que implicaria que a forma do pronome com nasal teria sido levada também ao Novo Mundo.
Mesmo assim, não é improvável que o intenso contato nos primeiros séculos entre falantes de diferentes línguas em território brasileiro tenha afetado a variedade do portu- guês falado no Brasil hoje, uma teoria que é também defendida por outros (Avelar e Galves 2016).
O pronome eu no X
A parte principal do nosso estudo é dedicada à exploração do uso do pronome eu no PBP ao longo da sua história, baseando o nosso argumento em dados extraídos do X. Portanto, antes de apresentarmos os dados achados, consideramos oportuno elucidar em um breve parágrafo por que achamos adequado recorrermos às mídias sociais apesar dos problemas que tais dados possam nos apresentar.
Fala vs. escrita
Koch e Oesterreicher fizeram uma contribuição relevante para os estudos comparativos entre língua falada e língua escrita. Com base em outros autores, eles desenvolveram e aperfeiçoaram o modelo cunhado por eles mesmos de imediatez e distância comunicativa. De acordo com os dois linguistas, o diassistema tridimensional de uma língua, proposto
14 Ocorrem vários alomorfes dependendo do sonido da palavra que lhe segue: n, m, ŋ ou sonorizado mi
(Baxter e Lucchesi 2009: 477; Bollée e Maurer 2016: 452).
por Coseriu (apud Koch e Oesterreicher 2008: 155)15 que consiste em variedades diatópi- cas, diafásicas e diastráticas, só pode ser completo quando também é acrescentado o parâ- metro oral/escrito que é considerado transversal e não redutível à diferenciação diassistê- mica. Portanto, variedades diatopicamente marcadas, variedades diastráticas classificadas como “baixas” e registros “inferiores” das variedades diafásicas são consideradas mais próximas da oralidade. No entanto, essa classificação das variedades como “mais próxi- mas” de uma ou outra forma de realização não é absoluta. Por exemplo, há enunciados orais que apresentam poucas diferenças em seu aspeto formal em relação a enunciados escritos, e, por outro lado, há textos escritos que possuem marcas claras da oralidade. Por- tanto, tudo o que é falado pode ser transcrito e tudo o que está em formato gráfico pode ser lido em voz alta. Esses processos de transcodificação medial levam aos termos Ver- schriftung quando se trata do primeiro processo e Verlautlichung quando se trata do se- gundo.
Com a introdução e difusão cada vez maior das mídias sociais como o X, Instagram, WhatsApp e outros aplicativos, pode-se argumentar que houve um aumento do processo de Verschriftung. Esta noção é essencial para lidar com exemplos do X, que é considerado um banco de dados claramente escrito, mas que apresenta marcas linguísticas fortemente ligadas à oralidade. De fato, dados extraídos das mídias sociais podem ser considerados a melhor fonte de enunciados de uma língua de imediatez sem ter acesso a gravações. Con- sequentemente muitos pesquisadores definem computer mediated communication (CMC) como uma instância de comunicação de imediatez (Benito Moreno 2021: 259)16 que per- mitiria investigar fenômenos linguísticos vernaculares.
No entanto, como afirmam Estrada e Benito Moreno (2016: 84), características dia- letais são frequentemente usadas por usuários do X com dialetos carentes dessas caracte- rísticas, principalmente por razões lúdicas. Essa imitação de características de uma lingua- gem popular de outros dialetos reflete a necessidade de criar uma personagem amigável em línea, mesmo se o usuário não utilizaria dados rasgos linguísticos na própria fala. Por- tanto, se um dado fenômeno linguístico aparece com alta frequência no X, há de se ter cuidado na sua interpretação como um reflexo da frequência na oralidade, já que os usuá- rios poderiam usar esses rasgos intencionalmente para criar um espaço virtual de intimi- dade (Benito Moreno 2021: 278). A saber, se um dado fenômeno linguístico se disseminar
15 Tudo o que se segue neste parágrafo, incluindo a figura 1, é retirado de Koch e Oesterreicher (2008; 2013) e, por isso, prescindimos de mais citações.
16 Veja a introdução do texto (Benito Moreno 2021: 258) com mais referências acerca da temática.
numa comunidade de falantes suficientemente grande, mesmo se for só virtualmente, este fenômeno, por mais “extremo” que apareça enquanto ao afastamento da norma falada, acaba se convencionalizando e se transforma assim num elemento linguístico diastratica- mente marcado (Benito Moreno 2021: 279), ou seja, se tornaria assim numa marca própria da CMC.
Metodologia
Inicialmente, a pesquisa ia ser realizada com o Twitter Archiver Premium, uma ferramenta suplementar ao pacote de aplicativos de Google Docs que permite uma pesquisa de hashtags e outros elementos lexicais integrados nos tweets dos usuários na língua escolhida por quem efetua a busca, português no nosso caso. Infelizmente o X introduziu recente- mente algumas mudanças no que diz respeito à função de geolocalização para certas API, fato que nos impediu classificar os dados por origem geográfica. Por conseguinte, decidi- mos prosseguir com a ajuda da função Advanced Search do X que permite a busca de orações exatas sem, portanto, ter a certeza de que os dados encontrados tenham sido pu- blicados realmente no Brasil, a menos que o usuário não tenha especificado no perfil a origem dele. Por isso, os dados aqui apresentados têm que ser tratados com muita cautela. Não obstante, tentamos escolher tweets de usuários cuja localização é publicamente visível ou que apresentam marcas linguísticas que deixam poucas dúvidas que seu autor seja bra- sileiro.
O uso de tweets públicos numa pesquisa levanta questões éticas importantes, espe- cialmente no que diz respeito à proteção de dados e privacidade. Embora os tweets sejam informações publicamente disponíveis e acessíveis, os pesquisadores ainda devem consi- derar as implicações de usar as expressões feitas em línea das pessoas para fins de pes- quisa, dado que os usuários nem sempre estão totalmente conscientes das possíveis conse- quências de suas postagens serem usadas por outros: o público imaginado não corresponde ao público real (Fiesler e Proferes 2018: 3). Segundo uma pesquisa sobre a percepção de usuários de X em relação ao uso de seus dados em pesquisas científicas, a maioria afirmou não ser consciente disso, enquanto quase a metade dos informantes estava convencida de que o uso de seus tweets para esses fins não estivesse permitido (ibid.: 5/6), apesar de que segundo os termos de serviços do próprio X não há tal proibição. Mesmo assim, os pesqui- sadores têm a responsabilidade de respeitar a privacidade e autonomia dos indivíduos e garantir que suas práticas de pesquisa não causem danos ou infrinjam os direitos dos usu- ários. Portanto, uma consideração cuidadosa dos princípios éticos é essencial ao usar
tweets públicos numa pesquisa. A fim de proteger os direitos dos usuários, decidimos adap- tar informações que possam ajudar a identificar o usuário, como nomes ou endereços exa- tos, ou qualquer conteúdo sensível que possa refletir negativamente sobre a identidade do usuário, como a língua vulgar a pesar de que X exige explicitamente que tweets sejam citados verbatim e com o nome do usuário.17 Visto que o que nos interessa é exclusiva- mente o uso do pronome eu e o contexto sintático em que ele aparece, essa abordagem não deverá infringir a veracidade das nossas conclusões.
Dados do X
A seguir vamos apresentar e discutir os nossos dados extraídos do X. Esses dados serão apresentados segundo o papel gramatical que o pronome eu cumpre: objeto direto, objeto indireto e complemento preposicional.
Como objeto direto
Vamos começar com verbos que pedem um objeto direto e, portanto, constroem-se com os pronomes átonos em acusativo segundo a gramática normativa. A busca no X foi feita com diferentes verbos como por exemplo largar (10a), escolher (10b), amar (10c/d), ver (10e), carregar (10f), abraçar (10g) e maquiar (10h). Apresentamos a seguir alguns exem- plos:
a. Tudo frouxo e rabo preso. Eu não acompanho mais nenhum da imprensa mineira, as vezes eu vejo os pós jogos do @usuário2 mas nem isso eu tô tendo paciência mais nao. Tá foda - @usuá- rio1 larga eu não || tá foda ficar gravando (Belo Horizonte, 2022)
A professora escolheu eu para ser representante de sala, alguém avisa que eu não sei nem re- presentar a minha vida imagina uma sala 🤡 (Piracicaba, 2024)
Impressão, ela te ama mais do q ama eu (Cachoeirinha, 2024)
esse gato ama eu (e o nome) (Santa Catarina, 2024)
quem vê eu e meu namorado c sdds nem imagina que a gente se xinga de tudo q é nome 😍
(Indaiatuba, 2024)
@usuário || boa migo carrega eu (Jundiaí, 2024)
um braço dele abraça eu e o outro abraça você, somos empaticos (Uberlândia, 2024)
A noite hoje foi tão aleatória que tipo, minha prima pintou e maquiou eu e meu amigo ( que é namorado dela). Amo amo (Cananéia, 2020)
Os exemplos aqui citados indicam que o fenômeno não parece depender da semân- tica do verbo. Pois, qualquer verbo que é complementado com um objeto direto pode apa- rentemente ser construído com a forma reta do pronome eu em posição de objeto, indique ele um estado (10c/d), uma ação cinética (10f/g), télica (10h) ou volicional (10b), isto é,
17 Veja https://developer.twitter.com/en/developer-terms/display-requirements.
qualquer verbo transitivo parece poder provocar a escolha de eu como seu objeto.18 Inclu- sive quando o sujeito e o objeto do predicado são coreferentes o nominativo pode aparecer em ambas posições:
a. Eu acho eu feio de bigode não vou achar essa marquinha de nescal feia? (?, 2023)
b. Eu vejo eu como velho até lá || Mas tipo 20-23 anos nem é uma idade velha kkkkkkkk eu acho que a gente muda a visão depois de um tempo com esses negócios de idade (Belém, 2023)
Segundo a gramática normativa, nos exemplos (11a/b) os verbos levariam o clítico me anteposto que nessa construção cumpriria com o papel de pronome reflexivo. Parece, pois, atuar o mesmo efeito geral que leva a omissão dos reflexivos em PBP.
Há de se destacar alguns pontos. Em primeiro lugar é conspícuo que em três dos nossos exemplos o eu objeto aparece coordenado com um elemento nominal (10d/e/h). Dado que o sistema nominal não diferencia morfologicamente os papeis sintáticos inclu- sive na norma culta do português e que, portanto, os dois participantes verbais —marcados como nominativo e acusativo respetivamente— aparecem na mesma forma, estes exem- plos poderiam ser uma indicação de que haja nestes casos uma assimilação do pronome ao caso do elemento nominal. Uma situação parecida se reflete no exemplo (10g) que demos- tra um paralelismo sintático. Segundo a gramática normativa a construção a ser utilizada incluiria redobramento do clítico com DOM “um braço dele me abraça a mim e outro te abraça a ti” dado que se trata de um contraste com ênfase. Porém, em vista de que o pro- nome você demostra uma só forma independentemente de sua função sintática (igual aos substantivos), poderia se tratar aqui também de um caso de assimilação para reforçar o paralelismo. A saber, o eu parece substituir a construção me...a mim como forma de ênfase. O mesmo papel enfático demostra o eu no exemplo (10c) onde serve aparentemente para sublinhar o contraste com a pessoa indicada pelo pronome te. Já os exemplos (10a) e (10f) são imperativos e, portanto, pela natureza exclamativa do enunciado o fato de que aparece o pronome tônico também pode ser interpretado como uma maneira de dar ênfase.
Apesar desta aparente conexão com a ênfase, encontramos alguns exemplos inclu- sive com alguns verbos dos exemplos em (10) que parecem ser menos enfáticos, já que o pronome não contrasta com nenhum outro elemento dentro da frase (como o exemplo 10b):
18 Segundo Hopper e Thompson (1980) transitividade há de ser encarada como um conceito que diz respeito a todos os compoentes de uma frase e, portanto, é um conceito gradual. Os dados limitados no nosso estudo, porém, não nos permitem tirarar conclusões sobre uma possível casuística entre a escolha da forma do pronome e a semântica do verbo. Aqui vamos nos referir com o termo transitividade à definição clássica, isto é, um verbo que simplesmente pede um objeto direto, caso seja este um pronome, no caso acusativo.
a. @usuário1 Vc quando vê eu ai *GIF* (?, 2024)
b. minha sobrinha vai ama eu vão vendo (Mogi Mirim, 2023)
c. Chamou eu pelo nome, pode crer que coisa boa eu num fiz. (São Paulo, 2024)
Em (12a) o tweet e seguido por um GIF -—graphic interchange format, basicamente uma foto animada— que quer de forma gráfica indicar como o usuário1 reagiria ao ver o eu. Nesta frase eu não contrasta com nenhum outro elemento dentro da frase: não há uma comparação, nem está coordenado com outro objeto direto do verbo ver. Portanto, o eu pode aparecer como um objeto direto não marcado pragmaticamente. O mesmo pode ser dito dos outros dois exemplos (12b/c), já que nestes o eu tampouco contrasta com nenhum outro elemento nominal ou pronominal e só cumpre com seu papel de objeto direto.19 Pas- samos agora para construções verbais com objetos indiretos.
Como objeto indireto
Objetos indiretos são aqueles complementos verbais que são regidos por uma preposição (Cintra e Cunha 2017: 157). Existem, porém, definições mais restritivas incluindo só ob- jetos que são regidos pelas preposições a e para e que podem assim ser substituídos pelos clíticos dativos, já que “o papel temático do objeto indireto é, em geral, beneficiário” (Cas- tilho 2010: 304). São verbos como por exemplo pertencer a, escrever a e dar a. Citamos por conveniência a seguir os exemplos encontrados na gramática de Castilho (ibid.):
a. O livro pertence a mim.
b. O Diretor escreveu cartas aos pais.
c. Dou esta maçã ao amigo.
a. O livro pertence-me.
b. O diretor escreveu-lhes cartas.
c. Dou-lhe esta maçã.
Estes três verbos foram encontrados também no X com eu como objeto indireto pre- posicionado por a ou para:20
a. Será que essa saudade pertence a eu???? (Castro, PR, 2020)
b. quando eu quero chorar eu vou ler a carta que a pessoa escreveu pra eu (?, 2021)
c. a amiga do meu irmão deu um planner da hello kitty p ele que é da loja da tia dela e ele deu
pra eu 😌 toma otária vai dá p presente p macho (?, 2024)
Nos três exemplos o pronome reto simplesmente parece substituir a forma oblíqua
mim, isto é, estaria em variação livre com ela e assim seria uma forma enfática. É claro
19 No exemplo (14b) há mais uma marca da oralidade: o infinitvo amá que aparece sem o 'r' final. Veja para este fenômeno fonético entre outros Noll (1999: 52).
20 Veja entre outros Noll (1999: 60) sobre a sustituição da preposição a por para no PB.
que sem conhecimento prévio do contexto pragmático destas enunciações, não vai ser pos- sível chegar a uma conclusão sobre o grau de ênfase de cada uma. Mesmo assim, achamos provável que nos exemplos (15a/c) os pronomes tônicos representem formas enfáticas, dado que no primeiro o usuário usou 4 pontos de interrogação e assim põe em destaque o tom chocante da pergunta. Já em (15c) o usuário claramente quer sublinhar o fato que o irmão dele, ao receber um presente, dá-o a ele, ou seja, ao usuário. Contudo, nada parece indicar que haja no exemplo (15b) uma tal ênfase. Esta análise se baseia principalmente no fato que escreveu pra eu se encontra na frase subordinada e, portanto, parece carecer de foco.
Há verbos que podem ser construídos tanto com OD como com OI e assim demos- tram diferentes tipos de regência. O verbo esquecer irá exemplificar esta oscilação. Se- gundo Cunha e Cintra (2017) existem duas construções “tradicionais” para construir esse verbo (ibid.: 543): (1) com OD ou (2) com OI com a preposição de quando reflexivo.21 Porém, segundo afirmam os gramáticos, tem se desenvolvido no PB uma terceira possibi- lidade que permite a regência por de sem o pronome reflexivo. Essa “construção, conside- rada viciosa pelos gramáticos, mas muito frequente no colóquio diário dos brasileiros, já se vem insinuando na linguagem literária, principalmente quando o complemento de es- quecer é um infinitivo” (ibid.: 539). Há, portanto, uma diferença semântica entra as duas construções descritas por Cunha e Cintra: ao passo que aquela com a estrutura transitiva direta (1) é sinônima com “deixar de trazer por inadvertência”, a segunda (2) significa “não lembrar, olvidar” (Oliveira 1975: 2-10). No X, portanto, aparecem construções deste verbo com a forma reta eu inclusive sem preposição de. Vejamos alguns exemplos:
a. Cara, estou numa felicidade surreal pelo nome1, esse mlq é merecedor de tudo que há de bom, grato demais pela amizade que tenho com ele, espero que ele não esqueça eu e nome2 e um dia volte para nos visitar!!! ✈️ (Rio de Janeiro, 2022)
esqueça tudo, tá? só não esqueça de eu KKK (Recife, 2023)
Ele se esqueceu de eu (Floriano, 2023)
minha mãe já esqueceu eu e a @usuário1 na escola (São Paulo, 2024)
Como mostram os exemplos, o verbo esquecer pode ser construído tanto para o sig- nificado (1), isto é, “deixar de trazer por inadvertência” (16d), como para o significado (2) “olvidar” (16a) com OD, fato que pode levar a uma certa ambiguidade, já que parecem se
21 Para um tratamento do verbo esquecer mais exhaustivo veja Oliveira (1975).
fundir as funções do OD e OI em uma só construção que omite a preposição de. Há, por- tanto, com este último significado também exemplos que são regidos pela preposição de (16b) e ainda, se for com de, com ou sem reflexivo (16b/c).
A seguir vamos nos deter ainda mais nos casos em que eu pode servir de comple- mento preposicional.
Como complemento preposicional
Segundo a gramática normativa, em uma frase preposicional, o objeto pronominal da preposição deve ser a forma tônica oblíqua, exceto com a preposição com para a qual existem formas supletivas.22 Vejamos alguns exemplos:
a. A minha mãe confia em mim.
Só depende de ti.
Os nossos amores não serão esquecidos nunca — por mim, está claro, e estou certo que nem por ti.
Paciente, obreira e dedicada, é a ela que em verdade eu amo.
Isto não é trabalho para mim.
De fato, as gramáticas são bastante unânimes nesse respeito: só particípios fossiliza- dos e advérbios permitem o pronome no caso reto como por exemplo afora, fora, exceto, salvo, menos e tirante (Cunha e Cintra 2016: 313; Gärtner 1998: 256). Não obstante, há mais duas preposições que mostram, segundo Cunha e Cintra (2016), uma oscilação entre caso reto e oblíquo: entre e até. A última, portanto, parece ter uma diferença semântica dependendo do caso em que aparece o pronome que lhe segue.
a. Um grito do velho Zé Paulino chegou até mim. (Cunha e Cintra 2016: 314)
b. E até eu tive hoje quem me oferecesse champanhe. (ibid.)
Segundo as gramáticas, no exemplo (18a) a preposição demostra uma função espa- cial enquanto em (18b) marca a inclusão do pronome especificado e assim é sinônimo de inclusive.
Em seu livro The Syntax of Spoken Brazilian Portuguese, Thomas (1969) também faz menção do uso preposicional da conjunção como que é sempre seguido pelo nomina- tivo (1969: 262) e ainda da construção igual a que tradicionalmente pede a forma tônica oblíqua (ibid.: 273) que, porém, “na fala popular, é frequentemente ouvido seguido pelo caso nominativo” (ibid.).23
22 São as formas comigo, contigo, etc.
23 Traduzido do original inglês: “in substandard speech it is often heard followed by the nominative case”.
Fala igual a eu. (Thomas 1969: 273)
Ou mesmo sem preposição a, como mostra o seguinte exemplo retirado de X:
amo que o nome1 é burro igual eu LKKKKKKKKK || (ele ficou em 10° lugar e eu em 11° no enem) (Maritubo, 2024)
Os dados retirados do X mostram que as restrições impostas pela gramática norma- tiva não são seguidas obrigatoriamente. Todas as preposições, inclusive aquelas que se- gundo a tradição pedem exclusivamente um pronome em caso oblíquo, podem aparecer com nominativo.
a. Ela tava bem bonitona , pena q n da moral pra eu. (Massaranduba, 2023)
q agonia esse jogo tá dando em eu (Rio de Janeiro, 2023)
Serase ela sente saudade de eu? (Pernambuco, 2024)
o homi que casar com eu ha de ter a vida de rey (kele (Manaus, 2024)
Parece então que o PBP, como é de se esperar de qualquer língua, optou por simpli- ficar um sistema de casos bastante complicado para resultar em um sistema que pede após qualquer preposição sempre a mesma forma. Se tanto os substantivos quanto os pronomes das outras pessoas —você(s), ele(s)/ela(s) e a gente— já não mostram vestígio algum de uma declinação, por que então seguir declinando eu? Thomas (1969) nos dá uma pauta para entendermos de quais contextos essa mudança talvez tenha começado exercer pressão sobre o sistema. Ele aponta a exemplos em que uma preposição é seguida por mais de um objeto, cada um conectado pela conjunção e. Nesse caso, todos exceto o primeiro aparecem no nominativo (1969: 252). Há, entretanto, vacilação e muitas vezes o primeiro comple- mento da preposição também aparece no nominativo, conforme afirma Thomas (1969), como nos seguintes exemplos retirados do X:
a. A revolução comunista começa com eu e o nome1 em uma mesa de boteco (Mogi dos Cruzes, 2024)
b. eu só penso em eu e ele no rj (Cuiabá, 2024)
Isso é certamente interessante, especialmente se consideramos o fato de que em al- guns dos tweets citados acima eu aparece em construções de objeto coordenado.24
Os dados aqui apresentados claramente indicam que a forma reta do pronome da 1.a pessoa do singular eu pode aparecer em PBP em todas as posições sintáticas. Com isto terminamos a amostra sincrônica do fenômeno e vamos a dar continuação com a procura de motivos que possivelmente tenham favorecido este desenvolvimento.
24 Veja os exemplos (10d), (10e), (10h), (16a) e (16d).
EU-mania
Neste capítulo vamos a discutir fatores da diacronia da língua portuguesa que possam ter ajudado a levar o PBP à situação atual.
Existe aparentemente uma tendência inerente à língua popular a dar preferência aos pronomes tônicos e adaptar o sistema em conformidade, segundo observa Vasconcel- los (1893: 99) analisando dados do português arcáico. Ela constata o seguinte:
No entanto, permanece inconfundível a tendência de forjar uma única série completa e regular de pronomes pessoais que concorde com a declinação de substantivos, não distinguindo de forma al- guma entre nominativo e acusativo, e marcando o genitivo e o dativo apenas com de e a. (Vascon- cellos 1893: 93)25
Ou seja, de acordo com Vasconcellos houve já em português arcáico uma tendência à criação de um sistema pronominal feito de só uma forma tônica declinada com a ajuda de preposições analogamente ao sistema nominal. A questão é por que o PBP parece estar dando preferência ao nominativo eu. Por que não generalizar o caso oblíquo mim como aconteceu com o sistema nominal em que as formas acusativas assumiram também a fun- ção de nominativo? Em italiano por exemplo os pronomes da 3.a pessoa lui/lei provêm do dativo de ille e em francês os pronomes moi/toi da forma tônica do acusativo mē. O sistema das línguas românicas permitiria, pois, um tal desenvolvimento. E de fato, Vasconcellos faz menção do uso de mim —que é a continuação do antigo dativo mihī— como nomina- tivo ou acusativo em português medieval:
Nominativo
por tal cuit’ aver come mi. (Vasconcellos 1893: 95)
vos sodes melhor cavaleiro e mais ardido ca mim. (Vasconcellos 1893: 95
Acusativo
e meus amigos perden mi. (Vasconcellos 1893: 95)
deus non quer que min queirades creer. (Vasconcellos 1893: 95)
Há hoje em PBP inclusive a possibilidade de construir um infinitivus finalis com a preposição para e o sujeito do infinitivo mim com função de nominativo:
Isto não é trabalho para mim fazer. (Cintra e Cunha 2017: 312)
25 Traduzido do alemão: “dennoch aber bleibt die von mir erwähnte Neigung unverkennbar, eine einzige vollständige und regelmässige Kette von persönlichen Fürwörtern zu schmieden, die zur Substantivdeclination passe und stimme, Nom. und Acc. gar nicht unterscheide und Gen. und Dat. nur durch de und a kennzeichne”.
De acordo com Vasconcellos estamos aqui diante de um caso de atração sintática (1893: 97) visto que para, igual às outras preposições, pede o pronome oblíquo, de modo que “para o povo não parecia correto dizer para eu. O pronome foi interpretado de forma que dependesse da preposição” (ibid.).26
Em vista desses testemunhos, Vasconcellos conclui que na língua popular portu- guesa sempre existiam duas séries de pronomes tônicos em competição: “o povo achava e ainda acha legítimo opôr a nós, de nós, a nós, nós [...] também a série eu, d’eu, a eu, eu [...] criou, portanto, paralelamente a série mim, de mim, a mim, mim” (1893: 92).27 De certa forma, ela antecipou o desenvolvimento em curso no PBP que está dando cada vez mais preferência a eu. Assim que reiteramos a nossa pergunta: por que eu e não mim?
Pois, no mesmo texto de Vasconcellos, a linguista afirma que “o povo e o português arcaico que era a língua popular usava os pronomes de maneira desperdiçadora”28 (ibid.: 75) e destaca eu especialmente. Que este uso desperdiçador dos pronomes pessoais não tenha mudado até os dias de hoje, podemos comprovar pela seguinte observação que certos defensores de uma norma rígida achavam pertinente ser incluída numa gramática prescri- tiva:
Convém usar com extrema parcimônia as formas pronominais da 1.a pessoa do singular, especial- mente a forma reta eu. O seu emprego imoderado deixa-nos sempre uma penosa impressão de imo- déstia de quem o pratica. Não nos devemos esquecer de que as palavras que designam sentimentos exagerados da própria personalidade começam sempre por ego, que era a forma latina do pronome eu. Assim: egoísmo, egocêntrico, ególatra, egotismo. (Cintra e Cunha 2017: 301)
Se não tivesse uma tendência na língua falada de usar o pronome pessoal da 1.a pes- soa do singular mais frequentemente do que —aparentemente— necessario, com certeza os gramáticos não teriam considerado importante trazer este aviso à atenção dos leitores.
Efetivamente, considerando o fato que o português, igual às demais línguas români- cas, é uma língua que codifica a pessoa verbal em suas desinências, não deveria ter uma motivação de exprimir o pronome sujeito de maneira redundante. Por isso, o português
26 Traduzido do alemão: “es dem Volke falsch und verwerflich schien, nun auch einmal para eu zu sagen. Es hielt also das Pronomen für abhängig von der Präposition”.
27 Traduzido do alemão: “das Volk dachte und denkt, man dürfe neben nós, de nós, a nós, nós […] getrost und unbenommen auch eu, d’eu, a eu, eu […] stellen; erfand dazu und daneben aber noch die Reihe mim, de mim, a mim, mim”.
28 Traduzido do alemão: “[d]as Volk und das Altport. das ja reine Volkssprache ist —geht im Grossen und Ganzen recht verschwenderisch mit den persönlichen Fürwörtern um”.
standard é comumente considerado uma língua pro-drop, isto é, que não precisa exprimir o sujeito pronominal. Contudo, como já foi afirmado acima, o PB parece estar em via de gramaticalizar o sujeito pronominal, fato que o aproxima ao francês. De acordo com vários linguistas (Noll 1999: 204; Duarte 2016) este desenvolvimento no PB se deveria à neutra- lização da marcação de pessoa nos verbos, fenômeno que por sua vez é uma consequência da introdução dos pronomes você/a gente que pedem o verbo na 3.a pessoa do singular.29 De fato, há no PBP hoje uma tendência de opor a marcação 1.a pessoa a todas as outras (falo - fala). Segundo Tarallo (2016) essa mudança radical teria começado afetar o PB no decorrer do século XIX. Mas como Noll (1999: 204) aponta, o fato de um fenômeno co- meçar a aparecer nos testemunhos escritos a partir de uma data específica, não significa que este não tivesse já se estabelecido na fala muito antes, neste caso, antes de os novos pronomes causarem a simplificação da conjugação verbal.
Em sua tese de doutoramento, Gondim Jacoby (2011) fez a mesma observação ao analisar um texto cuja primeira edição remonta ao século XV. Neste texto, aparentemente, o pronome nominativo aparece numa quantidade maior em trechos de discurso direto que em trechos narrativos (ibid.: 176) e inclusive em contextos em que não cumpre uma função enfática alguma, o que é uma indicação de o pronome da 1.a pessoa ser usado na fala como um marcador discursivo. Isto se deve ao fato que as primeiras duas pessoas são, essenci- almente, expressões dêiticas, isto é, sua interpretação depende do contexto extralinguístico do enunciado e ajudam a marcar discursivamente os dois participantes do diálogo no hic et nunc (Siewierska 2004: 5; Benveniste 1974). Por exemplo, Siewierska (2004: 267) cita uma tabela que mostra as frequências absolutas dos pronomes da 1.a e 3.a pessoa em inglês em vários tipos de textos, tomadas de um corpus de 40 milhões de palavras. Em discurso direto o pronome da 1.a pessoa é até três vezes mais frequente que os outros pronomes. Considerando o fato que a maioria dos enunciados na fala são de natureza egocêntrica, ou seja, o fato enunciado é apresentado desde o ponto de vista do locutor, uma frequência tão elevada do pronome da 1.a pessoa na fala não é uma noção surpreendente e nos atrevemos à suposição que em português popular a situação era e é comparável.
Isto sugere que o processo de gramaticalização do sujeito pronominal no PB não é atribuível exclusivamente à redução das formas verbais e, portanto, o uso de eu em con- textos em que não há nenhuma ambiguidade a ser desambiguada, possivelmente tem a ver
29 Segundo Noll (1999: 65) a generalização dessa forma verbal afeta no PBP inclusive a 3.a pessoa do plural, dado que essa forma mostra uma denasalização da vogal final.
com a frequência elevada de eu. Efetivamente, é amplamente reconhecido que a obrigato- riedade da expressão do sujeito pronominal surge diacronicamente por meio de um pro- cesso de gramaticalização, pelo qual um pronome pessoal livre, motivado funcionalmente por considerações no tocante à estrutura do discurso, se transforma em uma marca pessoal obrigatória vinculada ao predicado verbal (Siewierska 2004: 246-273). E uma das teorias que busca dar conta desses processos é a teoria frequency-driven morphologization que precisamente argumenta que enquanto mais frequente dois actantes sintáticos apareçam um do lado do outro na oração, mais elevado seria a possibilidade de gramaticalizar a construção.
Gramaticalização do sujeito pronominal e consolidação da ordem SVO
Além desses motivos aparentemente pragmáticos, existem outras razões, de natureza sin- tática, para exprimir o pronome sujeito em PB. Por um lado, como afirma Thomas (1969: 95), o pronome sujeito pode ser expresso para evitar que um pronome objeto apareça no começo de uma frase.
Nós nos despedimos. (Thomas 1969: 95)
Segundo ele, o PB recorre a esta tática porque a ênclise (despedimo-nos) não seria natural. De fato, de acordo com Meyer-Lübcke (1897), esse fenômeno remonta ao portu- guês arcáico, isto é, a uma época antes de que o PE generalizasse a ênclise que é conside- rada uma inovação própria do PE. Existia, portanto, uma regra que vigia em todas as lín- guas românicas —e que é uma herança indo-europeia— segundo a qual os clíticos toma- riam com preferência a segunda posição na frase. As seguintes frases bastarão como exem- plos (ibid.: 317):
a. pois eu vollo direi.
b. que eu o descobro.
c. que eu o farey livre.
Não obstante, estes exemplos, são listados por Meyer-Lübcke como casos “com uma perturbação evidente da ordem original” a qual seria que vos eu digo (ibid.: 316).30 Consi- deramos, portanto, estas variantes uma indicação das mudanças no que diz respeito à pro- sódia do português que levaram aos clíticos pronominais serem reanalisados como perten- centes ao verbo, fato que resultou em que a próclise pudesse se estabelecer como norma
30 Traduzido do alemão “mit einer offenbaren Störung der ursprünglichen Ordnung”.
no PB. Porque, de fato, o relativo que não leva acento e parece mais natural que lhe siga a forma tônica eu à qual se pode ligar outro clítico. Por isso os exemplos aqui citados podem de qualquer maneira servir para sublinhar a asserção de Thomas.
Por outro lado, há uma tendência a valorizar na hierarquia sintática a função de su- jeito mais que a de objeto (Bagno 2009: 137), fato que já foi sugerido na introdução em que destacamos tanto a obrigatoriedade cada vez mais categórica do sujeito pronominal quanto o fenômeno do objeto nulo. Isso se mostra por exemplo, segundo afirma Bagno, na reanálise sintática em PB com respeito a certos verbos cujas construções foram substituí- das por outras que satisfazem a predisposição do PB de favorecer o uso dos pronomes retos. Ele destaca os verbos bastar, faltar e deixar (Bagno 2001: 109 e seg). Vejamos os exemplos:
a. Basta-me entrar num barco para ficar enjoado. (Bagno 2009: 116)
b. Falta ao senhor preencher mais este formulário. (Bagno 2009: 116)
Deixa-me dizer o que penso disso. (Bagno 2009: 111)
Nos dois exemplos em (28) os verbos principais são construídos com orações su- bordinadas substantivas que cumprem a função de sujeito desses verbos e o sujeito do infinitivo da subordinada co-refere ao OI do verbo na frase matriz. Já em (29) o sujeito do infinitivo corefere ao OD do verbo matriz deixar. O PB, portanto, dá preferência à expres- são do sujeito do infinitivo em detrimento do clítico. A consequência é que em todos os casos o sujeito do infinitivo é incluído na subordinada:
a. Basta eu entrar num barco para ficar enjoado. (Bagno 2009: 116)
b. Falta o senhor preencher mais este formulário. (Bagno 2009: 116)
Deixa eu dizer o que penso disso. (Bagno 2009: 111)
Enquanto que nos primeiros dois exemplos a organização sintática ficou basica- mente a mesma, ou seja, a oração subordinada substantiva ainda cumpre com o papel de sujeito, no exemplo com deixar a função do OD foi transferida do clítico me à oração subordinada.
Relativamente ao verbo deixar, Bagno propõe para os pronomes a designação pro- nomes sujeito-objeto ou PSO (2009: 112). Na visão dele, tanto como clítico quanto como nominativo, o pronome desempenharia duas funções sintáticas: a de objeto do verbo prin- cipal e outra de sujeito do infinitivo subordinado. Portanto, a variante com o pronome em nominativo seria uma inovação brasileira. Sem entrar na afirmação discutível que uma só
palavra possa cumprir ao mesmo tempo com duas funções sintáticas,31 queremos argumen- tar que a afirmação que a variante no exemplo (31) seja uma inovação do PB não é correta. De fato, as duas opções são variantes estabelecidas na língua portuguesa, como testemunha a seguinte observação feito por Gärtner (1999: 497):
A elevação do sujeito do infinitivo ao objeto direto da oração matriz ocorre no português europeu após os verbos de percepção sensorial ouvir, sentir, ver e após os verbos causativos deixar, fazer, mandar. Enquanto as construções com infinitivo impessoal ou pessoal com sujeito próprio ou co- referente representam a descrição dos fastos como percebidos ou causados pelo sujeito da oração matriz, a elevação do sujeito infinitival na oração subordinada ao objeto direto da oração matriz expressa que a atividade do indivíduo designado pelo sujeito da oração principal é dirigida ao objeto que é percebido na realização de uma ação ou movido a realizar uma ação.32
Gärtner chama essa construção de Accusativus cum Infinitivo fazendo assim referên- cia a uma construção do mesmo nome em latim clássico.33 Portanto, se o sujeito do infini- tivo subordinado aparece como OD dos verbos aqui citados o foco está no OD, enquanto se o sujeito do infinitivo é expresso em nominativo o foco está na oração subordinada completa. E é precisamente este aspeto da gramática portuguesa, isto é, a possibilidade do infinitivo ser pessoal que, ao nosso ver, é fundamental para o assunto tratado neste ensaio e representa a fonte mais provável do uso de eu em posições de objeto. Mas estamos nos adiantando. Este ponto será explicado de forma detalhada a seguir.
A língua portuguesa é bem conhecida pelo fato que ela permite a conjugação do infinitivo, o assim chamado infinitivo flexionado ou pessoal. Porém, como afirmam Cintra e Cunha (2017: 503) “o uso do infinitivo flexionado parece ser mais frequente no portu- guês europeu do que no Brasil”. Vasconcellos (1893: 5) observou esta mesma tendência no PB do final do século XIX e cita o seguinte exemplo:
31 Inclusive o Perini (2013: 212) afirma que nestes casos os pronomes cumprem com a função de sujeito e objeto ao mesmo tempo.
32 Traduzido do original alemão: “Die Hebung des Infinitivsubjekts zum direkten Objekt des übergeordneten Satzes tritt im europäischen Portugiesisch nach den Verben der sinnlichen Wahrnehmung ouvir, sentir, ver und nach den kausativen Verben deixar, fazer, mandar auf. Während die unpersönliche Infinitivkonstruktion und die persönliche Infinitivkonstruktion mit eigenem oder referenzidentischem Subjekt die gesamte valenzabhängige Sachverhaltsbeschreibung als vom übergeordneten Subjekt wahrgenommen bzw. verursacht darstellt, bringt die Hebung des Subjekts zum direkten Objekt zum Ausdruck, dass die Tätigkeit des im Subjekt des übergeordneten Satzes bezeichneten Individuums auf das Objekt gerichtet ist, das bei der Ausübung einer Handlung wahrgenommen bzw. zur Ausübung einer Handlung bewegt wird”.
33 Não podemos, portanto, falar aqui de uma continuação do AcI latim em português dado que justamente os verba postulandi e permissionis foram construídos em latim com orações finais introduzidas com ut ou nē e não com AcI mas, curiosamente, em grego sim. Houve talvez uma influência?
Quando passares por mim, bota a vista pelo chão, móde nós andar de amores,
o mundo dizer que não. (Romero 1883a: 190)
No Brasil o sujeito do infinitivo é expresso muito mais frequentemente através dos pronomes pessoais antepostos ao infinitivo que pelas desinências. Isto claramente se deve ao fato que por causa dos pronomes você(s) e a gente a forma verbal maioritariamente aplicada é a da 3.a pessoa do singular e isto terá ajudado o processo de gramaticalização do sujeito verbal em PB. Esta tendência vira regra quando se trata da 1.a e 3.a pessoa do singular, dado que nestes casos não tem desinências para o infinitivo, ou seja, cuja desi- nência é o morfema Ø. A saber, na 1.a e 3.a pessoa do singular o sujeito do infinitivo é expresso já em português medieval com a ajuda dos pronomes pessoais em nominativo, como provam os seguintes exemplos retirados de Vasconcellos (1893):
a. Nom m’é mester d’eu viver mais. (Vasconcellos 1893: 111)
Se te enfastia eu quererte. (Vasconcellos 1893: 112)
Em segredo te diria o motivo de eu penar. (Vasconcellos 1893: 116)
Cativo sodes em eu viver con quen vivo. (Vasconcellos 1893: 118)
Quero-vus eu dizer como façades para sempre fazerdelo pior. (Vasconcellos 1893: 118)
Há duas observações a serem destacadas. A primeira é que mesmo quando o sujeito do infinitivo na oração subordinada está coordenado pelo sujeito da oração principal e, por conseguinte, não há ambiguidade, é expresso com um pronome, como é o caso nos exem- plos (33c) e (33e). Por outro lado, vemos muito bem que inclusive quando o infinitivo aparece como complemento preposicional, ele está acompanhado pelo sujeito pronominal o qual se antepõe ao infinitivo é assim chega a seguir diretamente a preposição (exemplos (33a, c, d)).
Uma busca no X revela que em PBP hoje em dia o sujeito pronominal em orações infinitivas é aplicado quase categoricamente. Vejamos alguns exemplos:
a. Ela me fez eu me levantar da cama deitado p dormir já cara. (?, 2022)
Que Deus não permita eu morrer sem antes a arena eu conhecer, até a alma arrepia
🦅🖤🔥. (?, 2022)
bela n deixou eu dormir mais q isso, a não (Recife, 2024)
era pra eu ter comido mais ontem 😩 (Niterói, 2024)
Tem razão de eu ter uma paixão nesse menino, pqp (Minas Gerais, 2023)
Tanto nos exemplos com verbos causativos quanto naqueles onde a oração infinitiva é complemento preposicional o sujeito é exprimido em posição pré-verbal. São portanto nos mesmos contextos em que aparece o eu sujeito em português medieval. Se trata aqui
então não de uma inovação brasileira, mas sim de uma continuação e, ao que parece, de uma gradual gramaticalização do sujeito pronominal do infinitivo em posição pré-verbal.
Cabe aqui destacar o exemplo (34a) no qual não só o OD de fez é marcado com me mas o clítico é retomado com o nominativo eu na oração infinitiva. Encontramos vários destes exemplos no X o que parece confirmar a afirmação de Gärtner (1999: 497), isto é, que existe na mente dos falantes uma diferença semântica entre as duas variantes. Sendo assim, a análise de alguns linguistas (Bagno 2009: 112; Perini 2013: 212), de acordo a qual um só pronome possa cumprir com duas funções sintáticas, é contrariada. Seria então me- lhor argumentar que ao contrário da construção normativa, que dá preferência à expressão do OD do causativo, o PB favorece o sujeito pronominal em detrimento do OD que fica subentendido, mas não precisa ser exprimido.
Essas mudanças afetam inclusive orações gerundiais, visto que elas também podem, se são independentes do sujeito da oração matriz, expressar o sujeito deles em nominativo.
a. Como que uma volta de bike as 18:00 terminou em eu voltando pra casa as 1:00 💀 (Santa Caterina, 2023)
b. Meu horário biológico ja se acostumou com eu dormindo por 5h que me fez acordar agr as 4h da manhã pq eu simplesmente fui dormir as 23h || Cara (Mato Grosso do Sul, 2023)
Contudo, todos esses aspetos parecem ser condizentes com a tendência no PB de favorecer uma ordem sintática SVO categórica em todos os contextos, inclusive em per- guntas (Tarallo 2016: 76). Dado que no PB se generalizou a próclise dos clíticos, isto é, em orações pronominais o PB mostra uma ordem SOV, estes mesmos estão sendo agora cada vez mais omitidos para justamente chegar a uma ordem SVO. A posição pré-verbal está sendo analisada como pertencente exclusivamente ao sujeito enquanto que aquela pós- verbal cabe ao objeto. Mas porque os clíticos em PB são obrigatoriamente pré-verbais, eles precisam ser substituídos.
Síntese e proposta para uma tipologia do PBP
A discussão em torno do uso do caso reto do pronome eu em PBP e sua evolução diacrô- nica permite-nos formular algumas conclusões que, embora de maneira preliminar, podem elucidar o caminho que o português precorreu ao longo da sua história até alcançar a situ- ação atual. Reiteramos, portanto, que as seguintes conclusões estão baseadas na nossa pró- pria análise do material apresentado neste artigo e assim terão caráter tentativo.
Em português, assim como nas demais línguas românicas se desenvolveu a partir de um sistema pronominal tônico (latim) um sistema dicotômico com formas tônicas e átonas.
Os pronomes átonos, que —por serem clíticos— favoreciam a segunda posição na frase, começaram a ser reinterpretados como pertencentes sintaticamente ao verbo principal da oração. O português transatlântico seguiu o caminho da maioria das outras línguas româ- nicas e optou por generalizar a próclise, isto é, os clíticos pronominais precedem na ordem sintática diretamente o verbo principal.
Uma vez que o português desenvolveu a possibilidade de expressar o sujeito de uma oração infinitiva por meio de ou um pronome pessoal ou desinências verbais, na língua falada —que já por motivos pragmáticos utiliza muito mais o sujeito pronominal da 1.a pessoa— aumentaram os casos em que eu se manifestava explicitamente. Isto levou a uma gradual gramaticalização do sujeito pronominal.
Para que um fenômeno possa se gramaticalizar, têm que atuar vários parâmetros no sistema. De acordo com Lehmann (1995: 123) um deles seria a perda de variabilidade sintagmática. A saber, o sujeito pronominal tem que ser interpretado pelos falantes como estreitamente pertencente ao verbo. A consequência seria, pois, que os elementos que po- dem separar o sujeito do verbo vão sendo eliminados. Em PBP vemos precisamente isto acontecer: de um lado, os clíticos estão sendo cada vez mais evitados. Isto inclui tanto reflexivos quanto os acusativos propriamente ditos (sobretudo os da 3.a pessoa).34 A isto se junta o estabelecimento da possibilidade de expressar o OD com objeto nulo em deter- minados contextos. Por outro lado, é também observável que o advérbio de negação não pode aparecer em posição pós-verbal —após ter passado por um estado intermediário com negação dupla.
Estas mudanças comportam, entretanto, uma ordem SVO cada vez mais categórica no PB, um processo que é ainda acentuado pela reinterpretação do pronome dêitico ele em posição de objeto como basicamente fórico e pela introdução dos pronomes novos você(s) e a gente que tampouco são declináveis e, portanto, quando são objetos aparecem sempre em posição pós-verbal.
Finalmente, porque as orações subordinadas infinitivas, quando cumprem com o pa- pel de objeto do verbo matriz —como é o caso com os verbos causativos e os verba di- cendi— aparecem na ordem sintática precisamente após o verbo matriz. Isto resulta na situação em que o sujeito do infinitivo vem a se achar justamente atrás do verbo matriz. O
34 No entanto, os clíticos da 1.a e 2.a pessoa do singular me, te, e lhe (que é usado como clítico de acusativo para a 2.a pessoa do singular em algumas variedades) são ainda produtivos inclusive no PBP e assim seguem firmemente estebelecidos na gramática. Para uma análise do uso dos pronomes me e te em construçõos de redobramento de clíticos em variedades mineiras veja Macha Rocha e Martins Ramos (2016).
mesmo acontece, obviamente, quando a oração infinitiva é complemento de uma preposi- ção. Por conseguinte, pela natureza linear da língua, este eu, que é sujeito do infinitivo, é gradualmente reinterpretado como objeto. De fato, é o mesmo processo de atração sintática que mencionou Vasconcellos (1893: 97) com respeito à construção para mim fazer, só que ao contrário, porque o pronome é interpretado tão estreitamente ligado ao infinitivo que a atração vai em direção para a preposição, em vez de partir dela. Portanto, parece cada vez mais natural que eu cai em posição de objeto ou atrás de uma preposição. Este processo é evidentemente ainda reforçado pelo fato que a forma tônica dos pronomes das outras pes- soas já se estabeleceram nesta posição sintática, visto que também nestes casos é a única forma disponível.
As mudanças que a língua portuguesa vem sofrendo no Brasil condicionaram uma evolução do sistema pronominal cujo resultado se mostra sobretudo nas variedades popu- lares, visto que aqui a pressão da norma exerce um menor efeito estandardizante que nos falantes altamente escolarizados. Se, portanto, a evolução da língua falada decorresse na- turalmente, isso é, sem a influência niveladora da norma, o sistema pronominal do PBP se reduziria a só uma forma por pessoa gramatical: eu, tu/você, ele/a, a gente/nós, vocês, eles/a. Evidentemente no Brasil a tendência ao ajuste do sistema pronominal para que combine com a declinação nominal, de tal modo como o pressagiou Vasconcellos (1893: 93), parece continuar exercendo sua influência na modificação deste sistema.
Portanto, tipologicamente o PBP está se afastando das outras línguas românicas. Para poder visualizar esta mudança, recorremos ao conceito de Bossong (1980) sobre a tipolo- gia das funções dos actantes. Segundo o romanista alemão, os pronomes átonos, por serem clíticos e, por conseguinte, se apoiarem no verbo, de fato podem ser comparados às desi- nências verbais que codificam o sujeito no verbo. A saber, os pronomes átonos fariam parte da conjugação verbal (Bossong 1980:1-2) e seriam desinências verbais que remetem ao objeto. Portanto, em base do caráter basicamente linear da língua, a relação gramatical entre o verbo (V) e seus actantes (A para o sujeito e O para o objeto direto) pode ser realizado por meio das posições respetivas de cada actante e/ou por meio de gramemas (x/y) que podem ou não marcar cada participante na frase. Com isto ele se refere à flexão nominal. Mas além disso, a função dos actantes pode ser codificada inclusive no verbo,
isto é, com desinências (x/y).35 Segundo este esquema, propomos a seguinte definição para o PBP.
Sujeito
Predicado
Objeto direto
PBP
Nom./Pron.
A
(y)V(x)
[O]
PE
Nom.
[A]
Vx
[(y)O]
Pron.
[A]
Vx(y)
[(y)O]
Latim
Nom./Pron.
[Ax]
Vx
[Oy]
Tabela 1: Funções dos actantes em PBP, PE e latim
A introdução de pronomes inovadores indeclináveis ao sistema pronominal do PBP impulsionou uma adaptação sistemática deste. Especificamente, dá-se preferência às for- mas tônicas dos pronomes e, por conseguinte, são tratados de forma semelhante aos subs- tantivos. As desinências do objeto, isto é, os clíticos estão sendo abandonados. Por isso, ao contrário de outras línguas românicas como o PE e o espanhol, em PBP a tipologia das funções dos actantes é a mesma tanto no sistema pronominal quanto no nominal. Neste aspeto o PBP voltou ao estado do latim que tampouco diferenciava entre substantivos e pronomes, como mostra a tabela 5, já que em latim não existiam clíticos.
Há, porém, algumas diferenças fundamentais: o PBP está em via de neutralizar a marcação de casos inclusive no sistema pronominal, quer dizer, para cada pessoa existem só pronomes tônicos cuja função sintática é codificada unicamente pela posição que eles tomam com respeito ao verbo principal. Inclusive a declinação através de preposições (DOM) parece estar em via de desaparecimento (cf. Cyrino e Irimia 2023). Outrossim, a falta de parênteses em torno do sujeito aponta ao fato que o sujeito está sendo cada vez mais gramaticalizado e, portanto, precisa ser expresso lexicalmente. Cabe destacar também que, se há uma obrigatoriedade categórica do sujeito, a codificação do mesmo no verbo virou facultativo, o que indicam os parênteses entre as quais está o x. A saber, só a 1.a pessoa do singular de alguns tempos —e as vezes a 3.a do plural— licencia desinências no verbo.
35 Vejamos um exemplo do latim. Na frase Caesar Marcus vidit aparece um verbo bivalente, isto é, o predicado V requer dois actantes, um sujeito A Caesar e um objeto direto (OD) O Marcus. Seguindo a proposta de Bossong, as relações sintáticas do latim podem ser descritas da seguinte forma: (Ax) (Oy) Vx. Evidentemente, em latim o verbo apresenta uma relação de concordância com seu sujeito, realizada mediante gramemas —indicado pelo x— mas não com seu objeto cujo gramema não mostra concordância com o verbo. Em outras palavras, a função do sujeito é marcada duas vezes gramaticalmente: com o nominativo no actante A e com a desinência verbal em V. A posição dos símbolos no esquema não é à toa, visto que os morfemas flexionais em latim são sufixados. Além do mais, a possível omissão dos argumentos nominais é indicada pelos parêntesis, em vista que, em latim, um verbo pode aparecer perfeitamente por si só.
Conclusão
O presente ensaio visou contribuir ao estudo do sistema pronominal do português do Brasil focando no uso do pronome tônico eu em funções sintáticas outras que o nominativo. A este fim prosseguimos da seguinte forma.
Primeiramente, discutimos a literatura em torno do fenômeno revendo as principais gramáticas da língua portuguesa e assim privilegiando um ponto de vista sincrônico. Isto revelou que o fenômeno é pouco tratado. A continuação, apresentamos os dados encontra- dos no X de forma descritiva. O X revelou-se muito útil por oferecer uma vasta base de dados, reunindo no seu espaço virtual informantes diversificados que manuseiam a rede social e produzem enunciados, fornecendo uma ampla variação linguística em todos os níveis tanto diatópico, diafásico como diastrático. A deficiência, sem embargo, mostra-se quando não é possível analisar os dados com respeito a esse diassistema por falta de acesso às informações extralinguísticas. Não obstante, foi possível mostrar que o pronome eu pode aparecer em todas as posições sintáticas: como objeto direto, indireto e inclusive como complemento preposicional.
Há, portanto, outro aspeto a que se atentar. Apesar de que este uso não estândar do pronome eu seja verificável inclusive em fontes tão diversas como na poesia e na música popular, o fato de que apareça no X não prova que realmente haja um aumento deste uso na língua falada. Como foi discutido, determinados fenômenos linguísticos podem ser usa- dos em CMC para fins específicos deste meio de comunicação. Para elucidar se o fenô- meno neste ensaio discutido realmente tenha alcançado uma disseminação inclusive na fala, falta um levantamento de dados quantitativos tanto no X como na língua falada.
A partir dos dados do X voltamos para a literatura desta vez focando na diacronia do fenômeno. As fontes revelaram que o sistema pronominal do português, sobretudo se fo- cando na língua falada, sempre exibiu uma miríade de formas e construções alternativas que concorriam umas com as outras. Portanto, não vai ser possível achar uma só razão pela qual no PBP hoje eu pode ser usado em todas as posições sintáticas. É muito mais provável que um conjunto de vários fatos sócio-históricos exerciam e seguem exercendo sua in- fluência na língua a qual se adapta de acordo com as ferramentas já existentes no sistema que é a língua portuguesa.
Finalmente apresentamos, baseando-nos nas observações feitas neste ensaio, uma definição tipológica do PBP a partir da análise das funções dos actantes proposta por Bos-
song (1980). Segundo esta análise o PBP se destaca consideravelmente da variedade pa- drão. Portanto, o uso do pronome eu em todas as posições sintáticas sugere a possibilidade de uma tendência cada vez mais acentuada a usar unicamente pronomes tônicos o que faz com que a ordem de palavras virou uma marcação das funções sintáticas, já que o PBP mostra uma tendência a um alinhamento neutral inclusive em orações pronominais. Evi- dentemente, a nossa proposta não passa de representar um estado hipotético, o ponto final de um desenvolvimento que só chegaria a se cumprir se a gramática normativa ensinada a nível institucional deixaria de atuar como força limitadora. Esta força se mostra no fato que algumas formas átonas como me, te e lhe seguem sendo produtivas no PBP o que de certa forma contradiz a asserção que no PBP haja uma tendência de eliminar os clíticos.
Não obstante, este estudo pretende ser uma pequena contribuição a um campo re- pleto de questões de investigação por resolver e lacunas por colmatar no que concerne o desenvolvimento do sistema pronominal do português falado no Brasil.
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